26-27.10.07 - Neurolag / Nableena / In Peccatvm / Zymosis / A Dream Of Poe / Strapping Lucy / Spinal Trip / Hatin' Wheeler - Salão de S. José, Ponta Delgada
Dia I
O passado dia 26 de Outubro, primeira etapa do debutante festival açoriano October Loud, deixou no ar muitas reflexões quanto ao estado actual da música de peso nos Açores, mais concretamente em S. Miguel. A coragem com que este festival se tentava impor nesta fase do ano em que as actividades neste campo são praticamente nulas era um sinal de louvor à partida e o cartaz que apresentava era também mais do que aliciante para obrigar a que a comunidade de peso micaelense se reunisse em massa no Salão de S. José, em Ponta Delgada.
A começar pelos horários, a organização cumpriu à risca aquilo a que se comprometeu. Quanto ao som, ia melhorando gradualmente e a partir de certa altura pouco se sentia os efeitos adversos da acústica da sala e o público… este não foi assim tão pontual, mas assim que soaram os primeiros acordes da primeira banda, os Neurolag, registaram-se imediatamente as primeiras “movimentações” [entenda-se, mosh]. A surpresa podia não ser grande por vermos um público a entregar-se completamente ao som groovy, balançado, potente e, agora, mais técnico dos Neurolag, pois já lhes é reconhecida a força em palco e o grupo de seguidores que são sempre incondicionais a prestar-lhes apoio. A verdadeira surpresa revelar-se-ia aos poucos, ao longo da noite. Mas já lá vamos. Com um Hugo Pimentel cada vez mais demolidor na forma de vociferar os temas deste quinteto, acabou por ser a nota mais positiva da actuação dos Neurolag, atendendo a que o resto da banda levou algum tempo a se soltar, ainda assim nunca atingindo o grau de entrega de outras ocasiões. Relativamente ao alinhamento do seu concerto, teve, como era de esperar, base nos temas do seu primeiro trabalho – “Perception, Memory, Cognition” -, havendo ainda tempo para estrear “4 The Broken Mind”. Percebeu-se com este que a banda está a mudar e a alimentar uma forma mais complexa de compor.
De seguida, esperava-se já que se gerasse o maior tumulto, dentro e fora do palco. Era hora dos Nableena subirem ao palco, banda que não precisou de muitas actuações para se afirmar, veementemente, no cenário local e a prova é que, realmente, a banda tem continuado a crescer e está num nível de topo para o que se pratica na região. O colectivo comandado por Petr Labrenstev [guitarra] e Gualter Couto [bateria] colocou em palco, sem mácula, toda a sua entrega, destreza e talento frente a um público que não perdeu um segundo para “viver” aquele momento e apoiar um projecto que é já um dos maiores casos de sucesso do metal na região. Complexidade, técnica, melodia e muito profissionalismo na forma de tocar marcam o death/doom metal destes ribeiragrandenses que bebem inspiração em bandas como Death, Carcass e My Dying Bride. Com o ambiente propício, notou-se ainda que os próprios músicos estavam mais soltos, enquanto que o público, mais uma vez realçamos, rendeu-se ao seu concerto naquele que foi um dos melhores momentos de todo o festival.
A acarretar quase dez anos de experiência e um estatuto que se lhes impõe que seja preservado em cada aparição ou trabalho discográfico, os In Peccatvm juntaram-se a esse ambiente deveras acolhedor e contagiante para arrancar para uma actuação que o próprio António Neves [voz, guitarra] considerou várias vezes como “o melhor concerto de sempre” da banda. Isto não porque a banda esteve excepcionalmente bem, mas porque o público – mais um vez refiro e já agora acrescento que esta era a surpresa de que falava – esteve irrepreensível. O ambiente que o October Loud trouxe acredita-se ser sintomático de que algo está a mudar – para muito melhor! Os grandes concertos ou festivais fazem-se de grandes bandas, mas essenciamente de ambiente e público alegre, unido, extrovertido e, acima de tudo, predisposto a apoiar os projectos. Isto viu-se do princípio ao fim neste primeiro dia do festival, quer com nu, death, black ou doom metal, situação pouco usual por estas bandas já que o público local vem comprovando há tempos que é mais afecto a correntes contemporâneas do metal. Sendo assim, até com os In Peccatvm se viu mosh e ouviram coros de apoio. Quanto à prestação da banda, ficou patente que ganhou força e dimensão com a entrada de um baterista de raiz e um teclista – que aqui até tocou guitarra perante a ausência de Hélder Almeida. Quanto ao resto, a banda esteve ao nível habitual. Revisitou os seus três trabalhos até à data, para surpresa de todos, com “Regnum Lusitaniae”, mesmo com o seu cheiro a “mofo”, a representar um momento emocionante.
Já com os corpos bastante suados devido ao bafo húmido da sala, e após recuperadas algumas energias nas contiguidades do recinto, os black metallers Zymosis encetaram a sua diabólica actuação, mais uma, de novo de forma irrepreensível. Aliás, começa a ser ponto mais que evidente que uma das virtudes da banda é manter-se sempre regular de concerto para concerto, o que neles é bom sinal. O público manteve-se activo, embora já se notasse um ligeiro abrandamento devido ao cansaço, mas ainda assim público e banda estiveram em sintonia. É curioso verificar como uma banda de black metal, que surge deslocada no tempo atendendo à realidade actual do metal açoriano, acabou por agarrar o respeito do público mercê de uma entrega e crença no seu trabalho que são agora reconhecidas por toda a gente. Uns verdadeiros guerreiros. Para além disso, a banda alcançou já algo que é muito importante: temas populares. É novamente curioso verificar como uma de banda de black metal sinfónico como os Zymosis acaba por ter, neste momento, o seu maior hino num tema com cavadas influências folk - “The End Of The Apocalypse”. O lead de piano de Sérgio Botelho, e que é divisa em toda da música, cria euforia aos primeiros instantes. Percebemos já que é um dos temas mais esperados pelo público e o que maior “festa” causa. Cenicamente a banda também esteve ao nível habitual – a figura da “morte” continua a povoar as actuações dos Zymosis. Em suma, o colectivo de S. Roque acabava com chave de ouro um primeiro dia de festival que superava todas as expectativas. Ou melhor… quase todas. Os presentes foram exemplares, mas temos a certeza absoluta que as pouco mais de duzentas pessoas dentro do Salão de S. José, poderiam ter chegado ao dobro com facilidade. No entanto, a nova geração de “putos” que começa a aparecer nos concertos em S. Miguel está a apresentar uma gana e vitalidade que nos fazem crer que a cena local está a entrar numa nova era. Nessa perspectiva, a qualidade compensa a quantidade.
Dia II
Depois de uma noite de descanso merecida, com algumas nódoas negras potencialmente a dificultar o sono, era hora de regressar ao Salão de S. José, um local habitualmente de práticas “mais católicas”, mas que aqui acolheu um evento “negro” e não de piores intenções, graças ao pároco local que é, de facto, uma prova de mente de arejada dentro de uma sempre tradicionalista Igreja. Um dos aspectos mais notáveis da história deste festival.
Desta feita não tão pontuais, tanto o público como a organização, se bem que para os segundos o atraso terá sido, obviamente, um compasso de espera deliberado a ver se se criavam condições para a primeira banda começar o seu trabalho, a segunda noite do October Loud começou, estranhamente, menos marcante que a primeira, “graças” a um público [ou à falta dele] que parecia não se ter empenhado tanto desta vez para dar continuidade à toada extenuante que se vivera um dia antes. O facto de ser fim-de-semana e se promover normalmente nesta altura o descanso e as práticas familiares podem ter sido motivos para este estranho atraso, para além de que o doom dos A Dream Of Poe também não terá contribuindo, já que se reconhece a pouca simpatia do público micaelense por este subgénero do metal. Contudo, quem estivesse lá, pelo menos pela curiosidade atendendo a que se tratava de uma estreia, não teria de forma alguma ficado desiludido. A Dream Of Poe mostrou-se um colectivo de sobriedade majestosa e muito sabedor dos seus objectivos. As composições do teclista, guitarrista e mentor do projecto, Bruno Santos, demonstram que o músico degusta avidamente este estilo e possui muito bom gosto. Apresentaram-se, como se impunha, numa toada sempre arrastada e monolítica, o suficiente para nos deixar confortavelmente hipnotizados. Os acordes “fundos” e melancólicos embalavam-nos em sentimentos negros, de Outono, gerando um ambiente muito acolhedor na sala. Para ajudar a isso, a visão de Bruno Santos e Paulo Pacheco a brindar e beber vinho tinto durante os intervalos dos temas. É curioso ver como o manancial de bandas nos Açores começa a estender-se a cada vez mais estilos. Uma forma de riqueza que nos apraz verdadeiramente. Ponto alto ainda para a versão de “Pressure” dos Anathema.
Numa noite de estreias, subiram ao palco os Strapping Lucy. Por falar em variedade, os Açores têm também agora um representante na área do death metal de inspiração sueca, directamente influenciado pelos Arch Enemy. Prova cabal disso é o refrão de “Aeon Apocalypse”. Após a primeira actuação da noite já tínhamos percebido que o som não estava nas melhores condições e com os Strapping Lucy a situação agravou-se ainda mais, prejudicando consideravelmente a sua actuação. De um denso som grave éramos quase incapazes de distinguir as notas dos instrumentos. Sendo assim e contando apenas com um som forte de bateria, os Strapping Lucy não tiveram a estreia que se esperava, pelos motivos já apontados, mas também porque, à excepção do frontman Cristóvão, a banda esteve literalmente parada, e na bateria João Oliveira demonstrou muitas dificuldades em manter o tempo certinho. Ainda assim, o potencial de alguns temas, por si só, conseguiu “desordenar” as posições do público mais chegado às grades.
Com os Spinal Trip não se previa nenhuma novidade. Não eram estreantes, mas, no entanto, eram um dos nomes mais esperados do cartaz. Isso é já habitual, pois a banda apresenta cada vez mais carisma e uma identidade vincada. Ainda assim, houve lugar a surpresas na sua actuação. Filipe Dias parece finalmente se ter desprendido e perdido a timidez que se vinha notando há anos nas suas prestações. Podemos ouvir agora, em todo o seu esplendor, o seu registo berrado – carregado de uma raiva e disciplina técnica impressionantes – e um tom limpo igualmente convincente. Ao contrário do que foi acontecendo às bandas que surgiram na mesma altura que os Spinal Trip, o grupo oriundo de Ponta Delgada tem vindo a amaciar o seu som e vai aproximando-o de bandas como Glassjaw e Chevelle, em cruzamento com o balanço de uns Deftones que se vai mantendo há muito no modo de compor da banda. Contudo, a banda é capaz de ter muita personalidade e o seu som não soa a cópia descarada de ninguém. Fica sim a prova de que os Spinal Trip sabem cada vez melhor como construir bons temas. Peso e melodia em doses perfeitas fazem com que as suas actuações nunca falhem os seus propósitos. Destaque ainda para o mimo que foi recordar “Cynical Smile”, o primeiro tema da banda, que foi dedicado ao seu guitarrista André Batista que em breve partirá para o continente.
Por fim, a estreia mais aguardada, ou não tivéssemos nas fileiras dos Hatin’ Wheeler Honório Aguiar, ainda para mais de novo na voz após uma experiência na guitarra com os Trauma Prone, aquele que foi o frontman da banda de metal mais popular de sempre nos Açores – Tolerance 0. Sabíamos à partida que este não era um projecto gerado sob as mesmas características que a sua antiga banda ou mesmo as dos Trauma Prone. Proclamou-se desde o início que este era um projecto mais descontraído, gerado sem grandes preocupações técnicas. Portanto, a atitude e o espírito é que mandavam e isto foi fielmente transposto para a sua actuação. Já sabíamos bem que Honório Aguiar sempre foi uma personagem prolífera, um verdadeiro entertainer que sempre soube marcar as suas actuações com algo de surpreendente. Com os Hatin’ Wheeler isso manteve-se para gáudio de todos. Embora o seu som chegasse, por si só, para satisfazer o público, foi na postura dos seus músicos em palco, forma de comunicar e o pormenor delicioso de oferecer vodka ao público para beber em conjunto que fez do seu concerto um momento inesquecível. O público desinibiu-se ainda mais e foi um final de noite deveras emotivo. O que falta a muitas bandas, os Hatin’ Wheeler têm para dar e vender – a atitude. Foi muito agradável rever um projecto em S. Miguel apostado em reavivar as raízes do punk/hardcore ainda que o balanço do metal mais moderno tenha lugar cativo nas suas composições. Coros simples e directos típicos do hardcore puseram imediatamente o público a cantar e até uma balada soube deliciosamente no repertório variado deste colectivo. Não há nada a registar de inovador na música dos Hatin’ Wheeler, mas o espírito exemplar que este colectivo apresentou promete tornar os seus concertos em autênticos momentos de diversão e partilha. Um regresso destes músicos em grande.
Para finalizar, só resta, de facto, congratular os responsáveis por este evento pela coragem da iniciativa e ao público pela entrega e espírito que irradiou para o recinto do Salão de S. José no passado fim-de-semana. O convívio também foi nota de realce no exterior do recinto, provando que, tanto a comunidade metaleira como os músicos deste género em S. Miguel, começam finalmente a construir o espírito saudável que é preciso para “a cena” local progredir sem obstáculos.
Texto: Nuno Costa
Fotos: Rui Melo [www.metalicidio.com]
1 comment:
Isto sim é uma review!
Rui Arruda de Melo
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