Monday, January 26, 2009

Entrevista The Firstborn

O NOBRE EQUILÍBRIO

Aos 13 anos de carreira a procura de uma identidade singular culmina em um disco pleno de virtudes e simbolismo e que faz dos The Firstborn, indiscutivelmente, um dos projectos mais entusiasmantes do panorama nacional. “The Noble Search” vinca o cruzamento entre música extrema e étnica que a banda lisboeta começou a dissecar com “The Unclenching Of Fists”, adoptando desta vez o Budismo como ponto filosófico de análise. Isto tudo só podia resultar num disco diferente e a mestria técnica e de composição do colectivo faz o resto. Bruno Fernandes [vocalista] indica-nos o caminho para o equilíbrio sensorial e espiritual.

Entre a gravação de “The Noble Search” e o seu lançamento vai quase um ano. Foi, única e exclusivamente, a procura de uma editora que motivou este atraso?
Não foi, de facto, a única razão que conduziu ao atraso... uma sucessão de pequenos infortúnios que quase nos levavam ao desespero limitou-nos bastante, e quando finalmente tivemos o trabalho finalizado e a edição negociada, eis que nos surgem mais alguns entraves. Com perseverança tudo foi ultrapassado, mas cheguei a temer não ver o disco editado antes de 2009 – e pouco faltou, diga-se.

Tirando isso, ainda contamos cerca de dois anos e meio entre a edição de “The Unclenching Of Fists” e a gravação do vosso novo trabalho. Este foi um tempo normal de gestação devido à preparação meticulosa de novo material?
Cheguei a pensar que teríamos o disco pronto em tempo recorde – pelos nossos padrões – mas acabou por ser um período normal de composição e pré-produção. Não esqueçamos que estivemos ainda bastante tempo a promover o “The Unclenching of Fists” em palco, o que não nos permitiu concentração total na escrita de novos temas, mas quando realmente esta se iniciou acabou por ser um processo relativamente célere.

Nos The Firstborn quer a música, quer as letras parecem ter enorme peso na criação do seu universo. Podemos falar em uma atenção acrescida para configurar qualquer um destes aspectos? Há, por ventura, um lado mais trabalhoso que outro?
Não consigo conceber uma parte isolada do seu todo, já que ambas interagem de forma íntima e acabam por completar-se. Se no registo anterior a temática lírica surgiu após os primeiros temas, no “The Noble Search” deu-se o oposto; comecei por escrever as letras na íntegra para apenas depois me debruçar na componente musical. Digamos que descrevo nas letras a paisagem sónica que depois procuramos atingir ao criar o tema.

Faz parte do seu perfil interessar-se por questões étnicas, religiosas e culturais de outros países ou isso acontece mais afincadamente quando tem que conceber um conceito para as letras dos The Firstborn?
O interesse começou apenas pela exploração de um novo universo que moldasse a nossa música, mas depressa evoluiu para uma constante na minha percepção da realidade. Ao escutar o que as outras culturas têm para nos transmitir, depressa nos apercebemos que as diferenças que nos separam são consideravelmente menores que os traços que nos unem, de um ponto de vista não somente étnico ou cultural, mas também interpessoal. Creio que ao percebermos quão facilmente o nosso universo musical encaixou em algo à partida tão distante como todo o folclore oriental, compreendemos também que a música, expressão base e ferramenta de comunicação por excelência desde tempos imemoriais, serve também um propósito didáctico e estimulante. Sei de muita gente que partiu do nosso disco anterior para a descoberta do throat-singing de Tuva ou a Sitar indiana, e isso é muito gratificante.

O País de Gales como pano de fundo para a gravação de “The Noble Search” foi um suporte importante para o seu resultado final, para além do potencial dos Foel Studios?
Sem dúvida, já que sem termos noção disso antes de partirmos, acabámos por ficar um mês em relativa reclusão, isolados do mundo até através da tecnologia que por ali teimava em falhar. Isso foi perfeito – embora por vezes enervante – para o trabalho que ali fomos desenvolver, permitindo-nos uma concentração total na criação do “The Noble Search”. Toda a atmosfera e paisagem em nosso redor era extremamente plácida e relaxante, o que terá sido importante para suportarmos todo aquele tempo ali encerrados, num vale de Gales.

Tiveram tempo de conhecer algumas bandas, a cultura local ou até mesmo estabelecer alguns contactos que vos permitam actuar lá mais tarde?
Nem por isso, estávamos a trabalhar quase 24 horas por dia no disco, já que quando o engenheiro de som residente, Chris Fielding, era finalmente vencido pelo cansaço ao fim de 14 ou 16 horas seguidas de trabalho, o nosso guitarrista Paulo Vieira pegava no “leme” e aproveitava para adiantar algum trabalho, de forma a melhor rentabilizar a nossa estadia. Nas poucas vezes que saímos, fomos apenas a um pub na aldeia mais próxima, a 15 quilómetros do estúdio, e pouco mais. Dito assim soa até um pouco deprimente, mas pese embora houvesse sempre quem quisesse sair, o trabalho acabava normalmente por falar mais alto... e tendo em conta o meio rural em que estávamos inseridos, pouco mais haveria para fazer.

Sem querer apelar a um discurso presunçoso, mas como descreveria os The Firstborn num contexto nacional? Serão, por ventura, das bandas mais originais? Preocupam-se com isso?
É algo que me deixou de preocupar há bastante tempo, já que a nossa realidade é tão diminuta que esses rótulos – já ocos por natureza – carecem ainda mais de sentido... poucos são os músicos que se mantiveram neste género todo este tempo, logo é difícil os projectos terem a longevidade necessária para amadurecer e encontrarem o seu caminho. Como tal, há capacidade – como nunca antes, creio – mas não há ainda muita identidade, salvas as devidas excepções.

O cerne lírico de “The Noble Search” é o Budismo. Teve apenas que ler sobre essa temática para ter bases para a concepção de “The Noble Search” ou foi mais além e participou, por exemplo, em cerimónias budistas, contactou a União Budista Portuguesa, etc?
A nossa postura relativamente ao Budismo é bastante simples, já que retiramos da sua filosofia e não da componente litúrgica a inspiração que nos move... se de uma perspectiva religiosa o Budismo é riquíssimo, acaba também por alienar um pouco os leigos por algumas premissas que dificilmente se enquadram no axioma judaico-cristão em que a maioria de nós cresceu. Já a sua perspectiva filosófica é mais acessível, encontramos nela várias correlações com alguma filosofia ocidental e é, como tal, de mais simples assimilação.

Tornou-se muito mais interessado nesta filosofia de vida enquanto trabalhava em “The Noble Search” ou, pelo contrário, a abordagem a esta temática surge, precisamente, porque já vivia desperto para estas crenças?
Como já admiti no passado, o interesse pelo Budismo partiu de um propósito meramente “estético”, já que procurava algo que encaixasse nas ideias que começavam a ganhar forma e que se tornariam no “The Unclenching of Fists”. Daí surgiu um encanto que foi crescendo com o estudo e com a leitura, sendo que encontrei aqui muitas respostas e também novas questões a colocar.

Aconselharia os seus princípios à “tensa” realidade ocidental?
Sem dúvida, creio que hoje – mais que nunca – os princípios do Budismo nas suas mais variadas vertentes contrastam de forma muito positiva com a nossa ocidentalidade. A isso não será alheio o crescente interesse por parte de muitos ocidentais nos seus ensinamentos que aqui procuram o escape ideal para uma vida cada vez mais virada para o imediato e para o materialismo.

Já agora, em jeito informativo ou até “propagandista”, importa-se de esmiuçar mais um pouco sobre o que são as “Quatro Nobres Verdades” e o “Nobre Caminho Óctuplo” do Budismo para os que possam vir a interessar-se pelo tema?
As “Quatro Nobres Verdades” lidam com o sofrimento e como nos apegamos cegamente às próprias raízes desse sofrimento. O nosso apego ao que está em constante mutação resulta invariavelmente num sentimento de perda que nos distrai do que realmente deveria importar-nos, o desfrutar da própria existência. Para aí chegarmos, os cânones budistas sugerem o “Caminho Óctuplo”, um compêndio de oito pequenas normas de percepção e de convivência que conduzirá ao que é definido como o “Caminho do Meio”, entre a sabedoria e a compaixão, entre o hedonismo e o ascetismo, entre a ilusão e o desapego total. Já o nosso velho adágio refere que “no meio está a virtude”, certo?

Pratica algum dos seus ensinamentos? Recorre, por exemplo, ao ioga ou à meditação para encontrar a serenidade necessária para resolver alguns dos seus problemas?
Medito quando sinto predisposição para tal, mas nunca impus a mim mesmo uma revisão total do meu quotidiano, nem creio que fosse esse o meu caminho. O fascinante de tudo isto é que após alguma leitura, rapidamente se percebe que não há uma resposta nem um caminho a seguir. Tal como cada um de nós percebe a realidade de forma distinta, cabe também ao indivíduo encontrar o seu próprio rumo.

As vendas de “The Noble Search” estão a contribuir para o que creio ser a Associação Portuguesa para a Libertação do Tibete. Como surge essa ideia e como está a funcionar mais concretamente esta campanha?
A iniciativa partiu da nossa editora, Major Label Industries, e foi imediatamente aceite por nós, visto tratar-se de algo que já pensáramos pôr em prática com o disco anterior mas que por motivos vários não veio a concretizar-se. É um apoio simbólico em que 50 cêntimos de cada cópia vendida reverterão para a associação Free Tibet. Não é uma afirmação política, já que nunca fomos nem jamais seremos uma banda activista, mas uma chamada de atenção para a situação vigente que escapa a muitos de nós, no conforto dos nossos lares enquanto vemos o mundo através do ecrã.

Deve ser um atento seguidor da situação social e política no Tibete. Como vê o futuro da região em termos de autonomia?
O Tibete é apenas uma das muitas regiões que viram a sua maneira de ser quase “apagada” pela Revolução Cultural... a China perdeu em alguns anos milénios de cultura, muita da qual de forma irremediável, e quase todas as minorias viram-se despojadas da sua língua e folclore e, no fundo, da sua identidade. Presumo que apenas assim um “gigante” como a China evite desagregar-se, pelo que será muito difícil – por muita pressão que se exerça – que abdiquem da sua posição de força.

De volta à música; continua envolvido com outros projectos musicais?
Infelizmente, o tempo escasseia cada vez mais e o pouco que me resta prefiro dedicar aos The Firstborn do que dispersar-me em outras bandas... não obstante, é muito gratificante trabalhar com outros músicos, dentro dos moldes de um estilo dentro do qual não estamos habituados a trabalhar, e aprendi imenso quando o fiz com, por exemplo, os We Were Wolves.

Como serão os próximos meses dos The Firstborn?
Espero que muito atarefados, com a promoção a “The Noble Search” e os concertos que optarmos por fazer. Ainda é muito cedo para pensar muito além disso, pelo que, por ora, a prioridade será dar a conhecer o novo álbum.

Nuno Costa


* Escute "Flesh To The Crows" no nosso player

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